Ailton Krenak critica "novo normal" e humanidade autodestrutiva

 Confira a transcrição do episódio do podcast do Instituto Claro com o ativista e escritor Ailton Krenak, que pode ser ouvido neste endereço

Música “O Futuro que me alcance”, de Reynaldo Bessa, de fundo

Ailton Krenak:
Aqui em Congonhas, Minas Gerais, o Aleijadinho deixou os profetas todos em pedra. Lá, no meio deles, tem o profeta Jeremias, que ficou com a fama de passar a vida dele lamentando, reclamando. Eu não tenho nada a ver com a Bíblia nem com o profeta, mas eu estou fazendo a mesma coisa: estou dizendo que nós estamos “comendo” o planeta, com esta conversa fiada de que a pandemia vai nos tornar mais conscientes, melhores, mais humanos e solidários.

Eu sou Ailton Krenak. Estou aqui na região do médio Rio Doce, na reserva indígena Krenak, onde eu vivo com a minha família.

Vinheta: “Instituto Claro – Cidadania”

Música instrumental, de Reynaldo Bessa, de fundo

Marcelo Abud:
Ativista do movimento socioambiental e de defesa dos direitos indígenas, Ailton Krenak tem chamado atenção com seus livros sobre a crise da humanidade. Em um deles, escrito a partir da pandemia do covid-19, Krenak refuta a ideia de novo normal.

Ailton Krenak:
“O Amanhã não está à venda” é uma resposta à irritação das pessoas de sair da pandemia, sair da quarentena e ir correndo para a rua, ir consumir, ir para um shopping e continuar esquentando o planeta. Esse amanhã, que as pessoas chamavam de novo normal, era uma aventura insana, porque o amanhã não está à venda, não existe esse amanhã; você está dando um calote, se você vender ele, seria como você vender um produto que você não tem.

Marcelo Abud:
Com essa mensagem, o autor pretende convocar as pessoas a viver o dia de hoje, a pensar o aqui e agora.

Ailton Krenak:
É uma maneira de animar aquelas pessoas que estavam ‘deprimida’, presa dentro de casa, ao dizer “olha, viva esse dia seu hoje”. Amanheceu o dia, recepciona esse dia com o valor que ele tem para você e para de ficar pensando no dia de amanhã.

Música: “Aqui e agora” (Gilberto Gil)
“O melhor lugar do mundo / É aqui e agora”

Marcelo Abud:
Para Ailton Krenak, a tal “normalidade” levou a humanidade a se divorciar da natureza, devastar o planeta e aumentar desigualdades.

Ailton Krenak:
Quando chegou a pandemia, é como se tivesse configurado pra mim aquela cena, em que eu ponho em questão a ideia de uma humanidade coesa, que existe uma humanidade idealizada, e a pandemia mostrou que não existe, na verdade nós somos fragmentos. Tanto que tem gente que já saiu do contágio, está curtindo suas vidas, ganhando dinheiro, e tem uma sub-humanidade morrendo pelas beiradas do planeta aí, feito inseto.

Marcelo Abud:
Em “O Amanhã não está à venda”, o autor afirma que a humanidade é pior do que a covid-19, em termos de extinção.

Ailton Krenak:
Eu já mencionei uma vez que eu olho ali no quintal e vejo as borboletas amarelas, brancas voando; os pássaros, eles brincam aqui em volta do quintal, eu não vejo nenhuma dessas espécies caindo morta no chão pela covid. A covid não está matando pássaros, baleias, golfinhos, urso polar, quem mata essas outras espécies todas somos nós, os humanos. Nós exterminamos as outras espécies de uma maneira voraz. A covid está matando só o Homo sapiens. Quer dizer, não tem problema nenhum, é só uma espécie que ela está sumindo com ele, porque, enquanto os humanos continuarem prevalecendo diante das outras espécies, na pirâmide, como o predador principal, ele não vai parar enquanto tiver vida na sua frente, ele vai matar tudo. O humano mata tudo.

Música: “O Sal da Terra” (Beto Guedes e Ronaldo Bastos), com Beto Guedes e Jota Quest

“Terra, és o mais bonito dos planetas / Tão te maltratando por dinheiro / Tu que és a nave nossa irmã”

Ailton Krenak:
Essa mensagem que eu disse que a Terra estava pedindo silêncio é uma maneira de traduzir uma complexidade desse organismo, que não é uma banana nem uma laranja, ele é o planeta Terra, ele nos antecedeu em bilhões de anos e ele vai continuar existindo bilhões de anos depois que a gente tiver desaparecido daqui. No caso, os humanos vão desaparecer por autoextinção, diferente de outras espécies que esperaram alguém lá matar eles, os terráqueos estão decidindo suicídio. Superaquecimento global é suicídio, envenenamento do solo é suicídio, enterrar os oceanos com pet, com lixo, é suicídio, matar os rios é suicídio. Eu vivo à margem de um rio, a 500 metros da bacia do Rio Doce, aquele rio que a mineração de Mariana jogou lama naquele rio e que vai completar cinco anos e a gente não tem nada vivo dentro da bacia desse rio, ele está morto.

Marcelo Abud:
Em seu texto, Krenak compara as grandes corporações com piratas no mar de miséria que, diante da pandemia, continuam a lucrar.

Ailton Krenak:
É, agora se todo mundo morrer não tem problema nenhum. Vai ficar alguém lá, naquela cabine do comandante cheio de grana, contando dinheiro. Isso, para mim, é a caricatura do que eles chamam de economia. Quando você chama essa atividade de economia, parece que você dá alguma dignidade para isso. E eu acho que não tem dignidade nenhuma em acumular dinheiro, acumular riqueza, acumular poder. É uma imoralidade, não tem nenhuma dignidade nisso.

Se nós continuarmos nessa pegada, o calor, a temperatura do planeta vai chegar a um ponto que nós vamos fritar quando a gente sair na calçada de qualquer rua, pode ser no Brasil, pode ser na Europa. Então é muito louco a gente continuar nessa batida e ainda querer o novo normal. A questão climática, ela é um evento objetivo, real, ela não é uma ficção, não é um filme de Hollywood. É a Terra ao nosso redor torrando, derretendo.

Música: “Um índio” (Caetano Veloso), com Maria Bethania

“E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida / Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias”

Ailton Krenak:
O valor da vida é intrínseco. A vida não tem que produzir coisas para ela ter sentido. Senão, nós íamos achar que só as pessoas que produziram prestígio e riqueza é que viveram. As outras milhares de pessoas e durante milhares de anos que essa humanidade vem se constituindo e que ninguém estava criando riqueza material e ninguém estava acumulando prestígio, então, eles não viveram. Quem viveu foi só aquelas pessoas que conseguiram agarrar alguma coisa e sair com aquilo como se fosse um troféu na mão. Esse é o sentido de utilidade da vida que acabou sendo impresso com a ideia de que tempo é dinheiro.

São muito poucas as comunidades humanas que permaneceram guardando alguma reverência em relação à vida na terra. Eles são índios, quilombolas e outros ribeirinhos espalhados pelo mundo afora, eles vivem nesses lugares consumindo o que a natureza proporciona para eles, numa vida simples, que o mundo desenvolvido acha que é subdesenvolvimento, que é atraso.

Música instrumental, de Reynaldo Bessa, de fundo

Marcelo Abud:
Ailton Krenak aponta que é justamente com essa população, composta, por exemplo, pelos povos da floresta, que todos podem aprender e aspirar por um mundo diferente. Não amanhã, mas no tempo presente.

Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Instituto Claro.

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